Mestranda em Geografia (PPGG/UFPB)
INTRODUÇÃO
Neste artigo temos como objetivo, refletir a partir da pesca artesanal
como se estabelece a relação homem/natureza e quais as implicações dessa
para a permanência da comunidade pesqueira que se situa no Povoado
Mosqueiro- Aracaju/SE. A discussão deste texto faz parte de uma pesquisa
maior de mestrado em andamento, intitulada As alterações
sócio-espaciais no povoado Mosqueiro: Um estudo sobre a permanência e
resistência da comunidade pesqueira. O povoado se caracteriza por ter
como limites: a leste, o Oceano Atlântico; a oeste, o Canal Santa Maria; e o Rio Vaza Barris, a sul e a
sudoeste, o que possibilitou e possibilita a relação dialética entre o
homem e a natureza, sendo a pesca - artesanal a atividade que garante a
permanência da comunidade pesqueira e do seu espaço.
Nesse sentido a pesca - artesanal é a atividade humana que media a
relação homem/natureza, ao mesmo tempo em que cria, por meio do
trabalho, a identidade dos sujeitos envolvidos nessa relação.
O Povoado Mosqueiro se caracterizava até algumas décadas atrás, pelo
isolamento da capital Aracaju, onde a comunidade pesqueira dessa forma
mantinha hábitos de ruralidade por meio da relação com o Rio Vaza-Barris
e o mar através da pesca, e por meio de pequenos roçados e coleta de
frutas que ajudavam na subsistência. A comercialização dos produtos
retirados dessa relação direta com a natureza se dava no centro da
cidade de Aracaju, no mercado central da cidade, para tanto era
necessário caminhar durante um dia inteiro pela praia acompanhando o
regime das marés, ou quando se tinha sorte, pegar carona em um caminhão
que, segundo relatos dos pescadores e marisqueiras mais antigas, se
aproximava do povoado. Essa situação começou a mudar somente na década
de oitenta com a construção da chamada rodovia José Sarney, que
possibilitou o acesso de transportes ao povoado e de toda uma estrutura
de urbanização e de especulação imobiliária que hoje se impõe ao povoado
fazendo com que o mesmo seja área de crescente expansão da malha urbana
e de uma estrutura turística que possibilite o consumo da paisagem.
PESCA ARTESANAL
A pesca artesanal como atividade extrativista, foi uma das primeiras
atividades laborativas exercidas pelo homem, a pesca em sociedades
primitivas, ainda que segundo indicações arqueológicas e etnológicas,
ela tenha representado uma importante fonte de alimento em períodos
anteriores ao aparecimento da agricultura (DIEGUES, 1983), de forma que
possibilitou a inserção de novas proteínas na alimentação humana como
também desenvolveu habilidades necessárias a transformação do homem em
ser social.
Para Engels (1876) em seu texto Sobre o papel do trabalho na
transformação do macaco em homem, a necessidade de exercer trabalho
estaria diretamente ligada à elaboração de instrumentos para a mediação
da transformação da própria natureza e do próprio homem.
Nesse sentido Engels (1876) mostra que as atividades de caça e pesca
está entre as mais antigas registradas, e logo, tem fundamental
importância ao inserirem proteínas animais na alimentação do homem, o
que lhes possibilitou maior força física e o desenvolvimento do próprio
cérebro, necessárias ao longo processo de transformação do macaco em
homem. O que nos permite dizer, que a pesca enquanto atividade que media
a relação homem/natureza se mantém presente desde o momento ontológico
da transformação do homem em ser social.
Ao longo dos séculos a atividade pesqueira vem tendo diferenciados
papéis nas diferentes sociedades. Diegues (1983) nos mostra que na Idade
Média, a importância da pesca praticada inicialmente dentro dos feudos e
depois expandidas, tinham como função suprir o consumo crescente dos
cristãos, se dando dentro de um incentivo a economia pesqueira que teve
grande importância naquele momento em algumas regiões como a
Escandinávia e o Mediterrâneo. Nesse processo a pesca é também
apropriada pelo modo de produção capitalista, e ainda assim permanece em
sua forma artesanal e constitui base de várias comunidades
tradicionais. Para entender o papel da pesca artesanal na mediação
dessas comunidades com a natureza, é de extrema importância caracterizar
e definir o que estamos entendendo como pesca artesanal, partindo aqui
do entendimento de Cardoso (2001):
Como pesca artesanal entendo a pesca realizada dentro dos moldes de pequena produção mercantil, que comporta ainda a produção de pescadores-agricultores, segundo o conceito de Diegues (1983
1988).
Trata-se de uma pesca realizada com tecnologias de baixo poder
predatório, levada a cabo por produtores autônomos, empregando força de
trabalho familiar ou do grupo de vizinhança e cuja produção destina-se ao mercado.
Na compreensão de que o conceito de pesca artesanal nos ajuda a definir,
a moldes de pesquisa, uma dada realidade, consideramos que essa mesma
não necessariamente se encaixa nos limites do conceito. O movimento da
realidade, a dinâmica de reprodução/ampliação do capital e seus
rebatimentos nas especificidades do local/global nos apresentam em cada
comunidade uma resposta própria às dificuldades postas para comunidades
pesqueiras artesanais, e no nosso caso, especificamente no Mosqueiro.
Ainda partindo do entendimento de Cardoso (2001): O pescador é um
sujeito social em processo de redefinição de sua atuação, frente aos
usos novos que se impõe aos seus espaços de morada, vida e trabalho (p.34). A pesca artesanal que se apresenta no Mosqueiro, nesse momento
de pesquisa, nos permite aqui apresentar a partir da realização de
trabalhos de campo e a aplicação de entrevistas junto aos pescadores e
marisqueiras desse povoado, como estes se relacionam com o lugar, que
historicamente é também meio de vida, a partir da atividade que lhes
identifica como pescadores e marisqueiras, assim como a própria vivência
enquanto comunidade que persiste e se podemos dizer, resiste em meio à
realidade que se coloca enquanto possibilidade de vida.
No Povoado Mosqueiro onde se situa a comunidade pesqueira pesquisada que
vem nos ajudar na reflexão desse artigo, é possível fazer uma leitura
do que seria esse trabalho, a pesca artesanal, que satisfaz as
necessidades vitais e básicas, de modo que, os pescadores artesanais do
povoado em sua grande maioria pescam para própria subsistência, antes de
tudo pescam para comer de forma que o que sobra é que é posto a
comercialização e para a aquisição de outros produtos.
Quando eu vou pescar eu pego pra comer, nunca gostei de vender, agora
não deixam, mas eu ir pescar a noite.(Pescador, 79 anos, residente no
Povoado Mosqueiro-Aracaju/SE. Fonte: Trabalho de Campo em 30 de janeiro
de 2010). Aqui pescam pra comer e pra vender também. Eu tenho quatro
filhos e os quatros se criaram da pesca... (Pescador, 59 anos, residente
no Povoado Mosqueiro. Fonte: Trabalho de Campo em 30 de janeiro de
2010).
A comunidade pesqueira do Mosqueiro é formada por famílias de pescadores
que estão à beira do Rio Vaza-Barris há décadas, muitos nasceram lá e
tem na pesca a possibilidade de trabalho. O Mosqueiro, sendo um povoado
que até a década de 1980 se caracterizava a partir de famílias
pescadoras, segundo os próprios pescadores, hoje tem sofrido mudanças já
que se tornou área de expansão da cidade de Aracaju, onde a especulação
imobiliária e o turismo, seguido de uma urbanização muito rápida, tem
imposto mudanças no modo de vida desses pescadores e marisqueiras.
Onde antes as famílias viviam da pesca e tinha acesso a toda extensão de
margem do rio, as árvores que permitiam coletas de frutas, a espaços de
terra que permitiam pequenos roçados, e mesmo a uma coletividade que se
mantinham dentro da própria comunidade. Onde costumes, vida e trabalho
eram compartilhados, hoje se têm um cenário diferenciando: casarões margeiam e impede o acesso a boa parte da margem do rio Vaza-
Barris, o grande processo de urbanização e especulação imobiliária hoje
privatiza os espaços que correspondem ao Povoado Mosqueiro, o que
diminui e mesmo impede a coleta de frutas, o cultivo de roçados e
pequenos animais. E ainda a construção de uma orla destinada ao turismo
ocupa o lugar de embarque e desembarque das canoas dos pescadores.
Segundo os próprios pescadores identificam: Aqui mudou muito, o Mosqueiro hoje tem mais gente de fora do que aqui do
lugar, o Mosqueiro hoje ta num valor medonho, aqui pra praia só tem
barão, só tem rico, o Mosqueiro agora ta muito valorizado... Há uns
vinte anos atrás, agente dormia aqui com a porta aberta, hoje em dia é
muito difícil, eu deixo o motorzinho ali trancado, mas eu durmo
assustado. (Pescador, 59 anos, residente no Povoado Mosqueiro. Fonte:
Trabalho de Campo em 30 de janeiro de 2010).
Além disso, alguns pescadores relatam a diminuição do próprio pescado,
segundo eles decorrente de impactos ambientais causados por uma lógica
de desenvolvimento que eles não vêem os lucros e que muito pelo
contrário, os afetam na medida em que diminui a possibilidade de se
manterem enquanto pescadores, como levanta alguns pescadores da
comunidade: dificuldade é encontrar o peixe, agora com tanta lancha que têm, ficou
tudo difícil, não respeita mais agente, rasga a rede da gente. Antes era
muito diferente, era muito peixe e pouca gente, tinha mais pescadores.
(Pescador, 63 anos, residente no Povoado Mosqueiro. Fonte:Trabalho de
Campo em 30 de janeiro de 2010).
Antigamente tudo era bom, a fartura tava ai. De uns tempos pra cá foi
diminuindo, diminuindo e ainda hoje tá caindo muito. Hoje agente vai
pescar passa o dia todo pesca 3, 4, kg, e o melhor mesmo é o caranguejo.
De 2001 pra trás tinha muito caranguejo, depois daquela mortidão, fiz
até entrevista pra o canal 4. (Pescador, 59 anos, residente no Povoado
Mosqueiro. Fonte: Trabalho de Campo em 30 de janeiro de 2010).
A PESCA ARTESANAL COMO MEDIAÇÃO DA RELAÇÃO HOMEM/NATUREZA.
Diante das discussões até aqui apresentadas, referentes ao papel da
pesca em determinado momento como condição de reprodução do próprio
homem, e seus diferentes papéis em diferentes modos de produção,
sociedades ou mesmo comunidades, faz-se nosso propósito agora,
compreender como na comunidade pesqueira do Mosqueiro, a pesca
artesanal, enquanto materialização do trabalho media a relação desses pescadores e
marisqueiras com a natureza, ao modo que permite e faz com que essa
comunidade se mantenha enquanto comunidade pesqueira.
Para entender como o pescador e a marisqueira, sujeitos dessa pesquisa,
se relacionam com a natureza, é preciso à compreensão de que o homem
dentro do processo histórico onde se dá a vida em sociedade, antes de
tudo é e produz natureza. É por meio desta que o mesmo se reproduz não
somente na esfera biológica, mas enquanto ser social, que produz
cultura, que transforma e se transforma enquanto natureza, e nessa
mediação se encontra o trabalho como atividade necessária à produção e
reprodução do próprio homem. Segundo Smith (1988): Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. (p.71).
Na análise de Lukács (1981), para entender o ser social em sua
ontologia, é necessário partir da leitura do trabalho como mediação da
relação homem natureza, trabalho esse que nasce da necessidade e da luta
do homem pela existência. Esse primeiro momento onde o trabalho tem
esse caráter intermediário de mediação da transformação da natureza pelo
homem, o que implica na transformação do próprio homem, caracteriza o
momento do salto, o homem que se torna um ser social. O salto que Lukács
(1981) nos traz representa um processo longo onde não se pode
caracterizar o momento exato em que essa transformação acontece, mas
onde se tem claro que o salto representa uma mudança estrutural e
qualitativa do ser, do ser orgânico em ser social, nas palavras de Lukács (1981): A essência do salto é constituída por esta ruptura com a continuidade normal do desenvolvimento e não pelo nascimento, de forma imediata ou gradual, no tempo, da nova forma do ser. (p.05).
Para Lukács (1981) seria impossível entender o ser a não ser pelo
trabalho, já que esse a partir do momento do salto se torna modelo de
toda práxis sociais. Apesar de estarmos falando aqui do momento
primeiro, é imprescindível a compreensão da ontologia do trabalho para
entendermos sua centralidade mesmo nas fases sucessivas a esse momento. A
sociedade, o homem enquanto ser social vai se complexificando a partir
de novas necessidades e com a criação de outras mediações para as
realizações dos fins que é antes construído no processo de consciência.
Se o trabalho é assim o responsável pela transformação do homem
inorgânico em ser social nunca deixará de ser central nas relações
sociais justamente por ter esse caráter ontológico, e pelo fato, segundo
Lukács (1981), que é no processo de consciência que se desenvolve
também a partir do trabalho, a própria consciência que se torna autônoma
na medida em que se auto-reproduz a partir do que capta tanto do mundo exterior quanto do
interior, fazendo assim com que o trabalho surja e se desenvolva,
determinando seus vários fins.
A discussão de Lukács sobre a ontologia do trabalho nos ajuda a entender
como a pesca media a relação homem/natureza presente no Mosqueiro, e
mesmo as outras relações colocadas pra essa comunidade. O pescador
artesanal por exercer uma atividade extrativista, está e depende
diretamente da natureza para viver, dos ciclos das marés, da lua, da
quantidade de peixes disponíveis, diferentemente de outras atividades
que de tantas mediações alienam o trabalhador da relação com o produto
do seu trabalho. O pescador artesanal do Mosqueiro nessa relação de
dependência e de transformação da natureza vai, ele mesmo, se
transformando a cada pescaria, adquirindo novos saberes sobre o mar e
habilidades sobre a pesca, como levanta Vannucci (1999): Em todo lugar, os ciclos lunares e de marés, regulam grande parte da
periodicidade da vida animal. A vida do pescador também se regula pelas
marés, pela lua e pelas chuvas, num ritmo que corresponde ao
comportamento dos animais e á vida e aos ciclos sazonais de plantas e
animais. (p.123).
Quando os pescadores afirmam que sempre viveram da pesca, que ali é o
seu lugar, que a pesca é o que sabem fazer, isso nos dá uma pista do
porque a comunidade pesqueira do Mosqueiro permanece, e nos mostra que,
para quem vive dessa atividade, o trabalho não é apenas um emprego, um
modo de vida, mas representa sua própria vida, seu próprio reproduzir-se
enquanto pescador ou marisqueira.
Eu gosto de pescar mesmo, eu não gosto de tá parado, de ficar em casa, eu gosto de trabalhar, pode- ser domingo, feriado, não tem horário, se eu disser vou pescar amanhã eu vou, se eu disser não vou eu não vou, sou mandado só de Deus.(Pescador, 59 anos. Fonte: Trabalho de Campo em 30 de janeiro de 2010).
A pesca nunca se acaba, nasci e me criei no Mosqueiro e vou morrer aqui mesmo. Aprendi a pescar brincando. (Pescador, 79 anos. Fonte: Trabalho de Campo em 30 de janeiro de 2010).
Parece que eu já arriei o umbigo pescando, porque meu interior é de água
doce eu amanhecia o dia no calão de umaredinha pescando, tomei conta de
casa foi a mesma coisa marido morreu mas deixou esse presente pra mim,
pescando também, minhas filhas iam chorando pescando mas eu levava, tem
que ir pescar, todo mundo sabe nadar, se virar num barco ninguém morre.
(Pescadora e Marisqueira, 65 anos. Fonte: Trabalho de Campo em 19 de agosto de 2009).
Quem mora em região de praia, tá no sangue, é nativo, o pescar é um prazer e se torna necessidade também.(Pescador, ex-presidente da associação de pescadores. Fonte: Trabalho de Campo em 19 de agosto de 2009).
Até aqui é possível termos a leitura de que a pesca artesanal no
Mosqueiro, representa sim a atividade que media a relação homem/
natureza, onde para esses pescadores e marisqueiras o rio, o mangue e o
mar são condição de sua própria vida. Mas, é preciso ainda atentar para a
pesca no povoado que há algumas décadas representava o trabalho de toda
uma comunidade, que mantinha laços a partir do trabalho e dessa forma o
modo de vida em comum, numa relação direta com a natureza, hoje não
está mais garantida por conta de todas as dificuldades já apresentadas,
postas para a pesca artesanal. Diante disso, grande parte dos
pescadores, assim como as mulheres e os mais jovens, acaba por procurar
outras atividades para complementar à renda, no caso das mulheres muitas vezes como
diaristas em casas de família, ou no caso dos mais jovens como único
trabalho já que grande parte não tem mais interesse em viver da pesca.
PERMANÊNCIA/RESISTÊNCIA A PARTIR DA PESCA
Dizer que não há garantia não é dizer que não há resistência, muitos
apesar das dificuldades se mantém na pesca artesanal, no caso das
mulheres marisqueiras estas continuam catando caranguejos e outros
mariscos, pois é essa atividade que lhes permite viver numa relação
cotidiana com o local, o rio, o mar. Na comunidade pesqueira do
Mosqueiro, a pesca foi e ainda continua sendo o trabalho que tem caráter central para quem se
identifica como pescador, mesmo que outras atividades sejam necessárias
para se manterem enquanto pescadores e pescadoras e não só, mas numa
relação de vizinhança ainda muito forte como afirma Cardoso (2001) em
outro momento.
E se há alguma dúvida sobre a centralidade do trabalho nas relações
sociais, fazendo uma leitura do lugar Mosqueiro, é possível sem muitas
dificuldades entender que esses pescadores, vivem do seu trabalho,
permanecem e resistem todos os dias para continuar vivendo da pesca.
A pesca que desde os primeiros momentos fez e faz parte das relações
humanas, que passou por outros modos de produção, e hoje apropriada pelo
sistema capitalista, como se apresenta, por exemplo, a pesca industrial
de forma indiscriminada na captura de pescados para abastecer os
mercados, ainda sim a pesca artesanal mesmo estando inserida nesse
processo global de reprodução ampliada do capital, representa o trabalho
que define o modo de vida e a possibilidade de permanência e
resistência da comunidade pesqueira do Povoado Mosqueiro dentro de uma
lógica ainda diferenciada do modo de produção posto.
Fonte: mosqueirense.blogspot.com